
O surf e a queda livre eram o escape. O surf fazia com o meu filho João desde que ele tinha seis anos, a queda livre apareceu depois e foi o complemento radical. Cinquenta segundos em queda livre até abrir o pára-quedas limpavam uma semana amorfa e chata, alegrada pelas surfadas à hora de almoço quando havia ondas. Normalmente começava o dia pelas seis da manhã em direcção ao Guincho ou à Costa da Caparica ou então à Praia Grande para a surfada matinal antes de ir para o atelier. Era a maneira de capitalizar energia para aguentar a rotina. Pintava à noite junto à lareira a ouvir aquele jazz que nós gostávamos na altura. Parecia perfeito, mas faltava alguma coisa.
Tu desapareceste lá para as bandas de Tomar e o Inverno passou e a Primavera chegou. Os dias em Évora começavam cedo no aeródromo, eram os tempos dos aviões a hélice sem GPS, e cada salto demorava quase uma hora para chegar à altitude de 10.000 pés. O tempo passava devagar e as horas passavam entre um salto e o seguinte. Num bom dia de saltos conseguia fazer dois ou três.
Por acaso ou não, foi o primeiro fim-de-semana que fui sozinho para Évora saltar. Levei a tenda de campismo e armei-a junto ao monte fronteiro ao hangar. A pista ainda tinha réstias de névoa matinal, como farrapos de algodão espalhados pelo alcatrão.
As portas do hangar ainda estavam fechadas e o silêncio entranhava-se na pele juntamente com o frio húmido que caía do céu.
Ao longe, começou a ser perceptível o som dum motor de avião. Era o meu instrutor e amigo, o Amaral, que vinha com o piloto e o avião do clube que tinha estado em Tires para a revisão de rotina. Passaram à vertical do aeródromo e vi um ponto preto a afastar-se do avião. Só podia ser o Amaral a aproveitar um salto de borla. Na queda livre o que se paga é a subida do avião, ou como diz o ditado, a descer todos os santos ajudam...
O avião ao aterrar como que atraiu a actividade adormecida e num ápice o aeródromo animou-se de gente e afazeres com as preparações dos pára-quedas para os saltos antevistos durante a semana de espera.
Quando abri a porta do avião e saí lá para fora, olhei de relance para os cinco graus negativos do termómetro e não tive tempo de tremer. Era o tempo de gritar, Corta e Ready Set Go para os meus companheiros de salto. E a paz, o vento e a velocidade nas bochechas apoderavam-se de nós enquanto nos aproximávamos uns dos outros com pequenos movimentos de braços e pernas. Estávamos a voar em relativo, voávamos a cair à mesma velocidade. Éramos Deuses e tínhamos consciência disso.
Mas mesmo os Deuses obedecem ao Caos e por vezes são arrastados no turbilhão caótico da causa efeito, tal como os humanos.
E no último salto do dia, quando já ia a caminho do monte para descansar, chamam-me para completar o grupo que tinha chegado de Lisboa e ainda pretendia fazer um salto. Voltei atrás e fui equipar-me. O avião só subia com a tripulação completa, o piloto mais quatro pára-quedistas. Eu era o quarto. Era o mensageiro do Caos.
O salto correu relativamente bem, o que quer dizer que fizemos metade das figuras que tínhamos planeado em terra. Os quatro mil pés aproximaram-se enquanto leva a dizer quarenta vezes Kodakum, o bip no capacete começou a tocar e num instante o mostrador do altímetro de pulso marcava três mil e quinhentos pés, altura da separação, rotação lateral estável, piloto do pára-quedas lançado e a surpresa feita dor lancinante até à náusea.
Encontrava-me suspenso no ar, com o pára-quedas aberto, estável e travado a três mil pés de altitude. Encontrava-me igualmente suspenso na dor e no medo de olhar para o meu braço direito e não o ver lá. Parecia que mo tinham arrancado.
Com o braço esquerdo, apalpei-o e cada toque era um tormento. Dominei o vómito, a náusea de pânico e a custo poisei o braço em cima da perna direita dobrada, enquanto com a mão esquerda destravava o pára-quedas para o manobrar até à zona de aterragem.
A adrenalina manteve-me desperto e consegui aterrar não muito longe do círculo que assinalava o ponto certo de aterragem. A maneira como estava a fazer as manobras de aterragem, só com uma mão, devem ter chamado a atenção de quem se encontrava na pista de que algo de errado se estava a passar comigo, porque no momento após ter aterrado de rojo na erva e deslizava rapidamente para um estado de choque ligeiramente consciente, ainda me apercebi de pessoas a correr e a gritar na minha direcção.
Acho que ainda consegui dizer que não sentia o braço direito e que estava partido, mas não tenho a certeza. Os sons transformaram-se em cores, as cores transformaram-se em riscas brancas e pretas que me atravessavam a cabeça de lado a lado.
E tudo passou a estar do lado de lá dum nevoeiro branco. E eu? Eu estava do lado de cá do nevoeiro. Sempre estive!