
The face in the mirror won’t stop,
the girl in the window won’t drop.
A feast of friends alive she cried,
waiting for me outside.
Before I sink into the big sleep
I want to hear, I want to hear
the scream of the butterfly.
(Jim Morrison in “When The Music’s Over”)
A face que me olha do outro lado do espelho, não a reconheço.
Pensando bem, nunca a reconheci, apenas habituei-me com o passar do tempo a identificá-la como sendo eu. Por vezes esqueço-me dela no acordar ensonado e fico parado em frente ao espelho à espera que o mundo, neste caso o meu mundo se componha, como um puzzle cujas peças são bocados de realidades distintas e nem sempre vividas.
Sempre me habituei a conviver com o outro, a partilhar o mesmo espaço e o mesmo sono. O sonho nunca foi partilhado, era vivido separadamente, mas o mais curioso era que cada um sonhava o outro. Alternadamente, até ao dia em que o outro, o da face que me olha do outro lado do espelho, não acordou do sonho em que me sonhava.
Foi o dia em que deixei de ter sonhos, em que deixei de o sonhar. Devia ter deixado de existir, o outro, mas não, sei que está por aí. Além de o ver do outro lado do espelho, pressinto-o na sombra do meio-dia, ou no vulto silencioso que me fecha os olhos de sono à noite.
Às vezes gostava que ele, o outro, acordasse do sonho de sonhar-me, e vivesse por uns tempos o meu sonho a sonhá-lo. Sonhar que era o outro, o que me olha do outro lado do espelho. Será que me reconheceria então, a ver-me do lado de lá?, ou também acharia estranha a minha própria face. Provavelmente assim seria. Ao ser o outro, a sonhar ser o outro, tornar-me-ia o outro de mim mesmo e não me reconheceria também.
Às vezes procuro-o nos silêncios, procuro ouvi-lo a respirar e quase que consigo. Ou então tocar-lhe no escuro, roçar ao de leve o seu corpo e ficar arrepiado com o quase contacto. Sei que um dia o vou encontrar, frente a frente. Se não enlouquecer, será o dia em que escutarei pela primeira e última vez, o grito da borboleta.