novembro 24, 2006

MEMÓRIA DE ACIDENTE


O surf e a queda livre eram o escape. O surf fazia com o meu filho João desde que ele tinha seis anos, a queda livre apareceu depois e foi o complemento radical. Cinquenta segundos em queda livre até abrir o pára-quedas limpavam uma semana amorfa e chata, alegrada pelas surfadas à hora de almoço quando havia ondas. Normalmente começava o dia pelas seis da manhã em direcção ao Guincho ou à Costa da Caparica ou então à Praia Grande para a surfada matinal antes de ir para o atelier. Era a maneira de capitalizar energia para aguentar a rotina. Pintava à noite junto à lareira a ouvir aquele jazz que nós gostávamos na altura. Parecia perfeito, mas faltava alguma coisa.

Tu desapareceste lá para as bandas de Tomar e o Inverno passou e a Primavera chegou. Os dias em Évora começavam cedo no aeródromo, eram os tempos dos aviões a hélice sem GPS, e cada salto demorava quase uma hora para chegar à altitude de 10.000 pés. O tempo passava devagar e as horas passavam entre um salto e o seguinte. Num bom dia de saltos conseguia fazer dois ou três.

Por acaso ou não, foi o primeiro fim-de-semana que fui sozinho para Évora saltar. Levei a tenda de campismo e armei-a junto ao monte fronteiro ao hangar. A pista ainda tinha réstias de névoa matinal, como farrapos de algodão espalhados pelo alcatrão.

As portas do hangar ainda estavam fechadas e o silêncio entranhava-se na pele juntamente com o frio húmido que caía do céu.

Ao longe, começou a ser perceptível o som dum motor de avião. Era o meu instrutor e amigo, o Amaral, que vinha com o piloto e o avião do clube que tinha estado em Tires para a revisão de rotina. Passaram à vertical do aeródromo e vi um ponto preto a afastar-se do avião. Só podia ser o Amaral a aproveitar um salto de borla. Na queda livre o que se paga é a subida do avião, ou como diz o ditado, a descer todos os santos ajudam...

O avião ao aterrar como que atraiu a actividade adormecida e num ápice o aeródromo animou-se de gente e afazeres com as preparações dos pára-quedas para os saltos antevistos durante a semana de espera.

Quando abri a porta do avião e saí lá para fora, olhei de relance para os cinco graus negativos do termómetro e não tive tempo de tremer. Era o tempo de gritar, Corta e Ready Set Go para os meus companheiros de salto. E a paz, o vento e a velocidade nas bochechas apoderavam-se de nós enquanto nos aproximávamos uns dos outros com pequenos movimentos de braços e pernas. Estávamos a voar em relativo, voávamos a cair à mesma velocidade. Éramos Deuses e tínhamos consciência disso.

Mas mesmo os Deuses obedecem ao Caos e por vezes são arrastados no turbilhão caótico da causa efeito, tal como os humanos.

E no último salto do dia, quando já ia a caminho do monte para descansar, chamam-me para completar o grupo que tinha chegado de Lisboa e ainda pretendia fazer um salto. Voltei atrás e fui equipar-me. O avião só subia com a tripulação completa, o piloto mais quatro pára-quedistas. Eu era o quarto. Era o mensageiro do Caos.

O salto correu relativamente bem, o que quer dizer que fizemos metade das figuras que tínhamos planeado em terra. Os quatro mil pés aproximaram-se enquanto leva a dizer quarenta vezes Kodakum, o bip no capacete começou a tocar e num instante o mostrador do altímetro de pulso marcava três mil e quinhentos pés, altura da separação, rotação lateral estável, piloto do pára-quedas lançado e a surpresa feita dor lancinante até à náusea.

Encontrava-me suspenso no ar, com o pára-quedas aberto, estável e travado a três mil pés de altitude. Encontrava-me igualmente suspenso na dor e no medo de olhar para o meu braço direito e não o ver lá. Parecia que mo tinham arrancado.

Com o braço esquerdo, apalpei-o e cada toque era um tormento. Dominei o vómito, a náusea de pânico e a custo poisei o braço em cima da perna direita dobrada, enquanto com a mão esquerda destravava o pára-quedas para o manobrar até à zona de aterragem.

A adrenalina manteve-me desperto e consegui aterrar não muito longe do círculo que assinalava o ponto certo de aterragem. A maneira como estava a fazer as manobras de aterragem, só com uma mão, devem ter chamado a atenção de quem se encontrava na pista de que algo de errado se estava a passar comigo, porque no momento após ter aterrado de rojo na erva e deslizava rapidamente para um estado de choque ligeiramente consciente, ainda me apercebi de pessoas a correr e a gritar na minha direcção.

Acho que ainda consegui dizer que não sentia o braço direito e que estava partido, mas não tenho a certeza. Os sons transformaram-se em cores, as cores transformaram-se em riscas brancas e pretas que me atravessavam a cabeça de lado a lado.

E tudo passou a estar do lado de lá dum nevoeiro branco. E eu? Eu estava do lado de cá do nevoeiro. Sempre estive!

2 comentários:

António Cândido disse...

Pois é amigo, o surf foi também para mim uma época de muita paz. Adorava ficar lá trás às 06:00h da manhã a contemplar o spray que as ondas deixavam a molhar-me a cara com o vento leste, ainda com os pés adormecidos pelo frio da água matinal. Boas memórias!
Quanto ao ar, nunca me atrevi a subir, confesso que tenho medo.
Valeu pela recordação. Um dia destes temos que levar as pranchas para uma praia qualquer para nos divertirmos (acho que agora preciso de uma long board para arrancar com os dois pés em cima...)

Um abraço

Julio Quirino disse...

Embora aí! Empresto-te uma das minhas. É que, como diz o ditado, "Old Surfer's Never Die, They Just Ride Longer Boards".

Por acaso, últimamente tenho andado numa Longboard de 31 pés...Dá pelo nome de Nagual!

grande abraço